O De Gestis Mendi de Saa é a primeira obra literária do Nouus Mundus, o primeiro livro escrito no continente americano a ser publicado. No ano de 1563, em Coimbra, por ordens de Francisco de Sá, filho de Mem de Sá, o tipógrafo-régio João Álvaro tipografou um pequeno volume em oitavo, com quarenta e nove folhas impressas em ambos os lados, que contam noventa e oito páginas, em cujo frontispício lê-se: Excellentissimo Singularisque Fidei Ac Pietatis Viro Mendo de Saa, Australis Seu Brasillicae Indiae Praesidi Praestantissimo. Este livro de 1563 contém o texto do poema epicum de José de Anchieta sobre os feitos do primeiro triênio de atuação do Governador-Geral Mem de Sá, no Brasil. Esta edição de 1563 III, que é a principal fonte do poema épico de Anchieta sobre os feitos de Mem de Sá, tornou-se consagrada em sua reedição do século XX, por Pe. Armando Cardoso, SJ, com o título De Gestis Mendi de Saa IV.
o poema De Gestis Mendi de Saa, pela natureza de seu tema, acerca da fundação da civilização brasileira, torna-se o poema inaugural da Literatura Brasileira, em um momento incipiente, em que a Língua Portuguesa ainda não estava de todo arraigada à população do Brasil, inicialmente no século XVIVI. Neste aspecto, o fato de ter sido escrito o poema em latim renascentista antes contribui para a formação de uma identidade autóctone brasileira neolatina, do que faria caso fosse, por exemplo, a sua expressão em Língua Portuguesa.
Neste aspecto a obra de José de Anchieta reflete o multilinguismo inicial do Brasil quinhentista. Anchieta escreveu em quatro línguas, o latim, o espanhol, o português e o tupi, que seriam as línguas de maior expressão no Brasil do século XVI, sendo o latim língua de cultura no continente europeu, na época da RenascençaVII. Em latim, além do poema épico De Gestis Mendi de Saa, Anchieta escreveu o De Beata Virgine Dei Matre MariaVIII, uma série de poemas líricos eucarísticos, algumas cartas, dentre as quais se destaca a Epistola quamplurimarum rerum naturalium quae S. Vincentii (nunc S. Paulii) Prouinciam incolunt, impressa em 1799 por Diogo de Toledo IX.
Texto latino: o guerreiro tamoio do Espírito Santo (versos 318 – 340)XXVIII
Huc omnis iuuenumXXIX legio, quibus acrior intus
Sanguinis ardor erat bellique cupido nefandi,
Contulit arma ferox, arcus celeresque sagittas 320
Lignaque picta auiumXXX pennis, quae barbara ferro
Spumiferique dolat peracuto dente politque
Dextra suis, gestatque feros crudelis in usus;
Et direpta ferarum immania tergora costis,
Durata ad solem, scuta horrida et inuiaXXXI telis.
Omnes uestitiXXXII patrio robusta colore
Membra: genas illi et frontem mediasque rubenti
Turparunt suras; hi nigro corpora sulco
Pingentes totos diuersisXXXIII nexibus artus,
Et pictos ueras imitantes corpore uestesXXXIV; 330
Vt quas artificis pulchra solet arte MineruaeXXXV
Pingere acu tunicas solertis dextera, uelXXXVI quae
Retia multiplici texti subtilia filo.
Pectora centum alii uariarum ac terga uolucrumXXXVII
Nudarunt pinnis, quas infecere colore
Diuerso, aptantes uiscoXXXVIII lita corpora circum;
Plurima pendentes pexo redimicula crine;
Ornarunt alis auiumXXXIX capita ardua multi,
Atque alios aliosque habitus per nuda dedere
Membra feri, horribiles uisu, uultuqueXL minaces. 340
Tradução
1.Aqui toda legião dos jovens, aos quais era mais acre, em seu interior,
2.O ardor do sangue e a paixão da guerra nefanda,
3.Compartilhou feroz as armas, arcos e flechas velozes 320
4.E lanças ornadas com penas de aves, que a destreza
5.Bárbara costuma confeccionar com ferro faiscante,
6.E pole com um dente afiado de anta, e cruel fabrica para usos ferozes;
7.Também couraças terríveis, retalhadas das costas de feras,
8.Endurecidas ao sol, como escudos hórridos que bloqueiam até projéteis.
9.Todos se vestiram em seus robustos membros com a cor de sua
10. Nação, uns mancham tanto as bochechas e a fronte,
11. Quanto o meio das canelas com cor rubra, outros os corpos com negro
12. Sulco, pintando todas as articulações em diversos entrelaçamentos,
13. Que até imitam pelo corpo pintado verdadeiras vestes, como 330
14. As túnicas que o artífice costuma bordar pela bela arte
15. Da solerte Minerva, com a habilidosa agulha, ou as redes
16. Que tece, delgadas com múltiplos fios.
17. Outros desnudaram de penas os peitos e os dorsos
18. De várias centenas de aves, que tingem com coloração diversa,
19. Fixando-as em volta dos corpos untados com visco;
20. Muitos ornam as cabeças altivas com asas de aves,
21. Pendendo muitíssimos laços em uma crina bem penteada;
22. E aspectos ferozes deram por seus nus membros, a uns e outros,
23. Horríveis de se ver, e ameaçantes pelo vulto. 340
O mérito da descrição hiperbólica dos confrontos e combates narrados no De Gestis Mendi de Saa, devemos à capacidade artística de José de Anchieta, seu pleno domínio do latim e conhecimento profundo da épica clássica. Desta forma, o maior valor do poema é cultural, por demonstrar-nos que o Brasil colônia se originou de uma sólida base intercultural, e que a colonização do Brasil não foi uma empresa meramente econômica para a exploração metropolitana da coroa de Portugal. Ao contrário, a maior resultante da colonização do Brasil não foi o enriquecimento da côrte de sua metrópole, mas o desenvolvimento de uma civilização continental e autônomaXLIV, com a criação de uma elite local que efetivamente colonizaria o território, do litoral para o sertão, ao longo dos séculos seguintes.
A própria rivalidade interna entre diferentes etnias e civilizações europeias e indígenas, no século XVI, delimitou o rumo da colonização do Brasil, que surgiu em seus primórdios de uma matriz luso-tupi, de uma aliança calcada pela miscigenação no século XVI, que se opunha diretamente ao grupamento franco-tamoio da França Antártica, como é narrado no De Gestis Mendi de Saa. Os projetos civilizatórios de ocupação do território se desenvolvem plenamente ao longo do século XVII e XVIII, fatos que não ocupam mais a produção literária de José de Anchieta.
(Prof. Dr. Leonardo Ferreira Kaltner,Universidade Federal Fluminense)