quarta-feira, 29 de setembro de 2010

História da Cidade do Jegue

A CIDADE DO JEGUE

Renata Ferreira de Oliveira

Lá por volta do ano de 1890, quando as contendas entre famílias tradicionais marcavam o cenário do sertão, um lugar foi palco de uma luta danada entre as famílias dos coronéis Tramando Males[1] e Vélio Alpes[2].

Não se sabe ao certo o ocorrido, o que se sabe é que a futrica corria de boca em boca, nas beiras das estradas, nos pequenos botecos, e ao redor das fogueiras que iluminavam as sentinelas.

Naquele tempo, ainda quando a cidade era um pequeno arraial na beira do Rio Pardo, a família do Cel. Tramando Males era numerosa naqueles confins. Tão numerosa quanto a família do Cel. Vélio Alpes. Enormes também eram seus rebanhos e suas terras. Acontece que, por certo, T. Males era um caboclo* dos mais brabos daquelas bandas e não tinha medo de nada, nem de homem nem de livrusia. O sujeito era tão valente que, dizia o povo, até alma penada das terras dele corria. Lobisomem então, passava ao largo das suas terras. Mas Vélio Alpes também era daqueles cabras* que tem no Sertão, de meter medo até em defunto dentro do caixão.

T. Males e Vélio Alpes não amarravam lá muito os bigodes. Ainda mais quando um roubou do outro um bode. Aí a rixa se agravou, quando Tramando Males um bode de V. Alpes matou. Matou e comeu com grande estardalhaço.

Vélio Alpes, que num tinha medo de se apoquentar, um bode de T. Males foi roubar para no braseiro assar. E convidou meio mundo de gente e prá eles anunciou que, com ele era assim, e não podia ser diferente: ladrão que rouba ladrão, tinha 100 anos de perdão.

E a farândula se espalhou. O lugar logo se tornou um cenário de guerra. Tinha os que eram do lado do Cel Tramando, e os que acompanhavam o Cel Vélio Alpes. Aqueles diziam que o Cel Tramando Males não ia deixar barato. Estes já retrucavam dizendo que barato já tinha ficado...

T. Males, sabendo das futricas, de uma novilha de V. Alpes fez restar somente as tripas.

O povo do arraial, dando notícias do acontecido, vivia de leva-e-trás deixando os coronéis mais aborrecidos. Vélio Alpes, teimoso como uma mula, espreitava contra T. Males..... E resolveu dar um troco, mas um troco tão bem dado, que o Cel seu rival não poderia nem mesmo responder...

Biriquita daqui, biriquita dacolá, V. Alpes surrupiou um jegue da fazenda Jatobá.

O jegue, favorito do Cel Tramando Males, que era tão gordo e belo, e que tinha sido criado por Mariazinha Timbó, bruxa velha, daquelas bandas. Diziam que a véia labutava com as coisas das profundas. E foi ela que, numa sessão de descarrego, disse ao Cel T. Males onde estava o seu burrego.

Da sua fazenda, T. Males, sabendo do acontecido, no seu rebanho botou sentido e a sua ação planejou.

Foi se acertar com Vélio Alpes, que deu de ombros a seu desafeto e, não querendo conversa, puxou um cigarro de palha e ficou a olhar o teto. T. Males se arretirou, mas vingança ele jurou.

Velio Alpes pôs-se a clamar que todo o povo das redondezas em sua casa viesse estar, pois naquele dia o arraial ia batizar. Quando todos, naquele panavoeiro se achavam na casa do coronel, esse trouxe o jegue paramentado como um tabaréu.

Ao povo pediu que guardasse aquele acontecido na memória, pois aquele jegue entraria para a história.

Anunciou que o jegue tinha sido doado por Tramando Males e que ali haveria de morrer, doando àquele lugar, o nome do Coronel, como haveria de ser. Porque assim, o lugar seria próspero, bonito e o seu povo trabalhador. Igualzinho àquele jegue, um dos mais belos animais que eles já tinham visto.

Chamou o padre para o jegue benzer antes de morrer, pois o bicho não podia ser morto pagão, para que sua alma não vagasse pelo sertão.

O povo, que queria mesmo era biritar, fez uma festa para honrar o pobre jegue que tornaria aquele lugar próspero e alegre.

Levaram o diacho do animal para a entrada do arraial, fizeram uma grande procissão encorajando o jegue a cumprir sua missão de dar seu nome e sua vida por aquele pedaço de chão. E o jegue, que nunca havia sido tão bem cuidado, de capim verdinho a pão de ló, ia para o lugar do sacrifício sem nada saber. Também, se soubesse, iria fazer o quê? Ia todo garboso, à frente do pelotão, se sentindo o melhor dos bichos, com todos lhe passando a mão. Pega daqui, pega dali, o bicho parecia um imperador. Na verdade, todo vestido, parecia um doutor.

Na entrada do arraial V. Alpes pôs-se a discursar, dizendo que aquele lugar um dia haveria de se chamar Tramando Males, em honra daquele jegue que ali iria tombar.

Mataram então, o pobre animal, e seu corpo sepultaram como se fosse alguém importante, digno de um funeral como costumava se fazer no arraial.

Foi uma notícia daquelas que se espalham como pólvora acesa. A turma de Vélio Alpes a seus desafetos chamavam de jegues, sem nenhum pudor ou piedade. Estes, sem poder retrucar, cobravam de seu Coronel uma posição a tomar.

E a guerra começou. O Cel Tramando Males, quase tendo um piripaque, ordenou a seus meganhas que iniciassem o combate. E, três dias depois, como num passe de magia, amanheceu morto na fazenda de Vélio Alpes, dois de seus vigias. Vélio Alpes, prá não ficar prá trás, mandou matar um primo de Tramando, pendurando-o em uma árvore, perto do curral. E assim, as coisas foram se sucedendo, ora morrendo um, ora morrendo outro, até que as famílias não eram mais tão numerosas assim. Foi quando aconteceu o pior.

Tramando Males, numa jogada de mestre, pegou a filha de Vélio e dela se tornou varão. E saiu dizendo aos quatro cantos que agora não era mais coronel, que agora era barão. Vélio Alpes, não se fazendo de rogado, pegou o filho de Tramando, e dele fez um roçado. Além disso, deserdou a filha e dela não quis mais saber. Se ela gostou do barão, com ele deveria viver. E mandou entregar Baleia, a velha cadelinha que a ela pertencia, lá na sede da fazenda do seu grande rival. Se estava com a filha, que ficasse com a cachorra, que não faria nenhum mal.

O Cel. T. Males, após o acontecido, arribou as malas e foi viajar, pois não tinha mais o respeito dos tabaréus daquele lugar.

Todos daquele lugar, a futrica puseram a delatar. E passaram a chamar o lugarejo de Tramando Males, até que um dia cidade se tornou, carregando consigo a história do pobre jegue, que a culpa dos outros teve de espiar, mas o nome da cidade ao menos veio lhe honrar.

Do velho Cel Tramando Males, não mais se soube. Dizem que foi aumentar a sua fortuna em outro lugar.

Contam hoje na região, que a cidade não se desenvolveu por culpa do jegue que tá enterrado naquele chão. É por isso que, quando uma coisa não dá certo num lugar, aparece logo alguém que diz: ACHO QUE TEM UMA CABEÇA DE JEGUE ENTERRADA ALI...

Em Tramando Males, não tem apenas uma cabeça, mas um jegue inteirinho...


[1] Pseudônimo de Cândido Sales.

[2] Pseudônimo de Célio Alves.

Nenhum comentário:

Postar um comentário